Água é uma iguaria (Ainda mais escassa durante a pandemia)
«Água, água, água, a água está acabando! Os dinossauros não têm água em suas casas e estão com sede há dias. »
Assim começava a peça de teatro que interpretaram as meninas e meninos da biblioteca de rua que é realizada no Vizcachera desde 2012. Os dinossauros estão com sede, como crianças, pais e avós desta comunidade de Lima que luta há quase 40 anos para ter acesso à água.
Até hoje, os vizinhos ainda contam como, por muitos anos, tiveram que descer com baldes até o bairro de Campoy, cerca de 40 minutos de caminhada, para buscar água para suas casas. Apesar dos esforços, a escassez de água nunca deixou de estar no centro das atenções desta comunidade. Em busca de uma solução, eles pediram apoio às autoridades e mobilizaram seus poucos recursos e mão-de-obra para construir, ao longo de anos de trabalho, um reservatório no rio Huaycoloro que deve um dia permitir que a água seja bombeada para a comunidade.
No entanto, apesar de todo tempo e recursos investidos por vizinhas e vizinhos, o Vizcachera, na capital peruana, ainda carece de água potável e esgoto.
«Quando a biblioteca de rua começa», explica Luciano Olazabal, membro da equipe do ATD Cuarto Mundo em Lima, «as crianças chegam querendo beber. Para elas a água é uma iguaria, algo delicioso! Ainda mais, se é água fresca de uma garrafa».
Julia Marcas, jovem moradora do Vizcachera, também faz parte da equipe de animadores da biblioteca de rua. Semana após semana, em torno de livros e crianças, Julia mostra uma verdadeira paixão por compartilhar conhecimento, para oferecer, para ajudar: «Para mim – diz Julia –, de uma forma ou de outra, outras pessoas sempre me ajudaram. Se alguém te dá algo, você tem que dar sua sabedoria para outra pessoa. A vida é como uma roleta, tudo vem e vai. Desde criança, sempre amei ajudar. É porque minha mãe é assim também, e eu aprendi com ela».
Desde o início da pandemia, Julia busca ajuda e mobiliza outras pessoas para aliviar as dificuldades que crescem muito rápido em sua comunidade. Em meio aos seus esforços, ela reflete: «Agora, na quarentena, é muito frustrante não ter o suficiente para poder ajudar aos demais. A pobreza não está apenas nas províncias, está nos arredores de Lima. Quantos voltaram para províncias pedindo ajuda? As pessoas vêm à capital para buscar um futuro melhor, mas agora todos estão deixando Lima porque se tornou o centro da epidemia. Várias famílias do Vizcachera, a maioria que vivia de aluguel, voltaram para suas cidades natal. Há mais vida na Serra do que em Lima, tudo está à mão: o sítio, os animais… e aqui em Lima está tudo seco, azedo… ».
O acesso à água e ao saneamento é um direito humano fundamental. Segundo as Nações Unidas, isso significa que o abastecimento deve ser suficiente e contínuo para uso pessoal e doméstico: água para beber, para saneamento, para lavar roupas, para o preparo de alimentos, limpeza doméstica e higiene pessoal. Além disso, a água deve ser potável: livre de ameaças à saúde humana; deve ter uma cor, cheiro e sabor aceitáveis; deve ser física e economicamente acessível para todos.
Quase 40 anos após sua fundação, o Vizcachera não só carece de um sistema de canalização de água potável e saneamento, como também não se beneficia de um programa de abastecimento de água por parte do poder público.
Na ausência de um serviço público que garanta seu direito à água, os vizinhos utilizam o serviço de água que chega ao bairro através de caminhões pipa. Sabe-se que no Vizcachera os vizinhos, muitos deles em situação de pobreza, gastam com água em uma única semana, o equivalente ao que uma família de um bairro de classe média em Lima gasta durante um mês. Além disso, o sistema de distribuição e armazenamento representa um verdadeiro problema de saúde pública. Os vizinhos guardam a água da melhor forma que podem, mas é sempre de forma precária: se há um pouco de dinheiro para investir, ela é armazenada em tanques ou poços que constroem em suas terras, se não, em tambores de plástico e bombonas, ou mesmo em baldes e bacias.
Na parte mais alta da colina, a situação é ainda pior. É mais difícil bombear a água até lá em cima, de forma que o litro custa mais quanto mais alto você mora. No pior dos casos, a família não pode pagar o bombeamento ou a casa está em um lugar muito alto e as mangueiras não chegam, neste caso, as famílias carregam a água em baldes morro acima. E assim, eles cuidam da água como se fosse seu bem mais precioso. A água é uma iguaria, as crianças da biblioteca de rua sabem bem.
Para as famílias mais pobres do Peru, muitas vezes dependentes de uma economia de sobrevivência, o confinamento levou a uma perda fatal na renda. Em poucos dias, a escassez de água em Vizcachera já era verdadeiramente insuportável. Não há água, nem dinheiro para comprá-la. A água é sempre um bem indispensável, ainda mais quando se proteger do coronavírus depende de lavar as mãos com frequência. Por fim, o Serviço de Águas e Esgotos de Lima enviou alguns caminhões pipa como auxílio, mas só abasteceu algumas famílias na parte plana do bairro. Nestas circunstâncias, «o homem da água – explica Julia – está cobrando apenas metade do preço para bombear, ou ainda menos para quem mais precisa. Mais no alto vivem as pessoas mais vulneráveis. No topo do morro mora sozinha uma senhorinha. Ela era vendedora ambulante e pagava 80 Soles para bombear a água, mas agora ela não tem nada, então o homem da água cobra apenas a água e um preço simbólico pelo bombeamento, só o que ela pode pagar».
Ao longo de oito anos de presença no bairro, a equipe do ATD Cuarto Mundo criou laços muito fortes com Julia e sua mãe, Dona Dominga, e com muitos outros moradores: Séfora, Ana, Melia, Ana Maria, Juana, Yovanna, Meche… Ano após ano, foram criados laços de alegria e cumplicidade com as cerca de 120 crianças que participam da biblioteca de rua e uma espécie de convivência e caminhada compartilhada com todos os moradores do bairro. Nesses momentos de maior escassez de água, por causa do confinamento, em que a Júlia se mobiliza para buscar ajuda para sua comunidade, como não se lembrar dos dinossauros sedentos que as crianças representaram em sua peça de teatro?
Ao final do confinamento, em contato com Julia e sua mãe, a equipe junto com os parceiros do ATD Quarto Mundo, que cuidaram do bem-estar das famílias do Vizcachera e de outros bairros de Lima, arrecadaram fundos para conseguir, em nome da biblioteca de rua, quatro caminhões pipa e o bombeamento necessário para a água para chegar às partes mais altas do bairro.
No dia da chegada, vários pais se juntam a Júlia para organizar a distribuição de água. Também ajudaram na distribuição da água alguns jovens orgulhosos de que essa água veio de parte da biblioteca de rua em que eles tinham participado quando crianças. O trabalho é árduo e se estende por quase 12 horas. A água chegou a muitas casas que já não tinham uma gota e a chegada da iguaria é celebrada, mas, apesar dos esforços para distribuir, não basta para todas as casas e sabe-se que em poucos dias será necessário lutar novamente para que a água chegue.
Para Julia e sua mãe, a mobilização em favor de seus vizinhos é continua e os desafios são crescentes. Com o confinamento, a escassez de alimentos também está aumentando, por isso, há algumas semanas, se organizaram com outras vizinhas para montar uma cozinha comunitária, uma espécie de cooperativa de alimentos em que os vizinhos e alguns doadores, que Julia tem mobilizado através de suas redes sociais, contribuem conjuntamente.
«Se eu procuro ajuda para minha comunidade – reflete Julia – que esta a uma hora, não mais, do centro de Lima, imagine outras comunidades, como estão vivendo? Como será sua realidade? Eu tenho acesso à tecnologia para pedir ajuda, mas se eles não têm, como estão garantindo seu sustento? Essa é a minha preocupação… ».
Em que momento as autoridades públicas terão as mesmas preocupações que Julia, a mesma urgência em ajudar? Quando se unirão a suas iniciativas pelo respeito aos direitos humanos? Quando se efetivará, de una vez por todas, o direito a água no Vizcachera e em tantas outras comunidades onde, apesar de seus esforços, os vizinhos seguem sofrendo sede de água e de direitos?
Este texto faz parte de uma série de artigos sobre solidariedade e cuidados mútuos que se vive na América Latina durante a época da pandemia do covid-19. Todas as citações proveêm de algumas entrevistas com Julia Marcas por videoconferência.
O comprometimento como o da Julia e sua mãe, Dona Dominga, com seus vizinhos são cruciais para a sobrevivência das pessoas e famílias mais pobres.
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Solidariedade, cuidado mútuo e resiliência
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