Discurso na Ilha de Gorée
O tráfico atlântico de pessoas escravizadas fez mais de 15 milhões de vítimas. Arrancadas de sua terra, de suas famílias e de sua cultura, essas mulheres, homens e crianças foram enviadas para o Haiti, Brasil e outros países americanos. Estima-se que mais de 2 milhões perderam a vida durante a travessia e foram jogados no fundo do oceano. Para aqueles que chegaram, foi um inferno. Essas terras também eram habitadas por povos indígenas que foram brutalmente exterminados.
Privados de sua identidade, esses homens e mulheres deportadas eram consideradas mercadorias e não seres humanos. Elas foram exploradas e submetidas a inúmeras formas de violência. Foi-lhes negado o direito de praticar sua identidade cultural, sua espiritualidade e até mesmo de manter seu próprio nome. As instituições estabelecidas na época – igrejas, governos e poderes econômicos – foram cúmplices dessa imensa atrocidade e até mesmo deram grande apoio.
- Hoje, ainda carregamos as cicatrizes desse período, que marcam nossos corpos e toda a nossa existência. Elas também estão na raiz de muitas das práticas que ainda sujeitam grande parte da população de ambos os lados do Atlântico a situações insuportáveis de miséria e exclusão.
Sobreviver ao sistema desumano da escravidão exigiu resistência, força e inteligência, que essas mulheres e homens aprenderam a desenvolver. Seja se organizando em quilombos, criando revoltas contra seus senhores ou redes de solidariedade nas plantações, sempre buscando outras estratégias, eles lutaram por sua liberdade.
No Haiti, essa resistência individual das pessoas escravizadas levou a uma revolta coletiva. Na noite de 13 para 14 de agosto de 1791, um escravo revoltado, Boukman, organizou uma cerimônia política e religiosa em Bois-Caïman com um grande número de escravos de várias tribos africanas. A sacerdotisa mambo, Cécile Fatiman, sacrificou um porco preto, e os presentes beberam seu sangue para se tornarem invulneráveis. Boukman então ordena uma revolta geral. O vodu foi um catalisador da revolta dos escravos no Haiti. A fundação do Haiti foi o resultado da revolta antiescravagista liderada por esses escravos quilombolas (maroon no Caribe) em 1791, que levou à independência do país em 1804, pondo fim a mais de três séculos de colonização.
- Essa revolta marcou um ponto de virada na história da humanidade; ela teve um impacto considerável na afirmação da universalidade dos direitos humanos e da dignidade de cada pessoa, pela qual todos nós somos devedores.
O Haiti é de fato a terra onde as pessoas escravizadas ofereceram liberdade ao mundo. Ele também ajudou outros países a alcançarem a sua. O Haiti é o símbolo da liberdade. Mas essa independência não é isenta de consequências para nossa existência como povo. A comunidade internacional se recusou a aceitar a independência do Haiti e interrompeu todo o comércio com o país. Enfraquecendo cada vez mais a nação nascente, o antigo colonizador exigiu reparações econômicas. O jovem país teve de pagar essa dívida injusta, que prejudicou consideravelmente seu desenvolvimento, teve consequências para cada haitiano e seu futuro e mergulhou o povo em uma pobreza profunda que continua até hoje.
Mais de 200 anos após a escravidão, não somos mais escravos acorrentados, mas as cicatrizes permanecem. Elas são expressas em injustiça social, racismo, interferência e dominação por um sistema. Uma certa ordem mundial, abalada como foi pelas revoltas dos escravos, persiste em suas aspirações de dominação em vez de paz.
Os países imperialistas continuam a se expandir, absorvendo em seus territórios um grande número de pessoas exauridas por suas políticas. Desarraigados, eles servem às economias dessas potências, enfraquecendo o desenvolvimento de seus próprios países. Parece claro que o Haiti está apenas pagando por sua ousadia em dar aos outros um gostinho de liberdade. Apesar de tudo, os haitianos continuam a acreditar em um futuro melhor. Embora urgentes e necessárias, as reparações econômicas e morais jamais apagarão as páginas dessa história. Mas, pelo menos, poderemos reescrevê-la de uma forma mais justa e digna.
Hoje, como Movimento ATD Quarto Mundo, estamos aqui para homenagear as vítimas de abuso institucional, do passado e do presente, mas também estamos aqui para reconhecer a força da resistência de quem lutou por sua liberdade, não apenas para si mesmas, mas para todos os povos do mundo. O Haiti foi um grande exemplo que mostrou ao mundo a força da luta coletiva pela libertação de todos. Mas a luta ainda não terminou e continuamos resistindo. Insistimos em manter vivas nossas raízes, nossa cultura e nossa espiritualidade ancestral, e em reconstruir os laços que nos unem a esta terra, até que um dia todos os povos sejam reconhecidos como tais.
Laura Nerline LAGUERRE – Haiti
Mogène ALIONAT – Haiti
Carine PARENT – França
Mariana GUERRA – Brasil
Eduardo SIMAS – Brasil