“É dividindo que se tem”
fotografias: Mudas e colheita, 2021 © Eduardo Simas e Mariana Guerra / ATD Quart Monde
Apresentação de Eudardo Simas na 74ª Assembleia geral da ONU, 2019. Eduardo Simas é membro de ATD Quarto Mundo no Brasil, antropólogo, sociólogo e permacultor.
Economia da dádiva para uma vida em abundância
ATD Quarto Mundo é um movimento internacional criado com pessoas que vivem em situação de pobreza, aliadas indispensáveis para construir um mundo em que todos podem viver com dignidade.
Como membro da ATD Quarto Mundo, minha família e eu fomos viver num pequeno povoado, Mirantão, localizado no estado de Minas Gerais, no Brasil. Queríamos conhecer a realidade da pobreza rural e compreender suas relações com o mundo urbano, bem como nos unirmos aos esforços daqueles que vivem esta realidade no dia a dia.
- Pudemos identificar rapidamente os tipos de dificuldades que essas pessoas enfrentavam: por um lado, a falta de recursos (como a terra ou recursos naturais) para preservar seu modo de vida tradicional e sua identidade de agricultores. Por outro lado, haviam barreiras para participar ativamente do mundo moderno: acesso limitado aos sistemas de saúde, justiça e educação, insegurança alimentar, subemprego, falta de oportunidades para a juventude, entre outros.
A descoberta de uma nova concepção da economia
Aos poucos, descobrimos também que eles tinham recursos próprios para enfrentar estes desafios.
Em 2012, um vizinho que trabalha no campo, por diária, chegou à nossa porta com um saco cheio de tomates frescos. Quando insistimos em pagar-lhe pelos tomates, ele recusou e com um sorriso disse: “vocês não sabem como as coisas funcionam por aqui”. No início, nos sentimos com uma dívida. Sentimos que tínhamos que lhe dar algo em troca. Mas nunca era suficiente: quanto mais dávamos, mais recebíamos. Nós nos tornamos bons amigos.
Apenas entendemos o que estava em jogo neste povoado quando uma amiga, Donga, uma senhora idosa que trabalhou duro em toda sua vida, nos explicou: “é dividindo que se tem”.
- E de fato, isto é o sentido da vida: uma forma coletiva de ser que contribui para a riqueza da comunidade com a plena confiança de que, participando do fluxo da abundância, todos ficarão bem. Isto foi o que me levou a me tornar um agricultor agroecológico: produzir mais coisas para poder compartilhá-las.
Um modelo inspirador
Vivendo em uma sociedade onde aprendemos a guardar tudo o que temos para nós mesmos, a poupar, a acumular, esta é uma forma inovadora de redefinir a riqueza e de construir uma verdadeira economia colaborativa, fundamentada em relações saudáveis e na reciprocidade coletiva.
Os mesmos princípios podem ser aplicados ao nosso planeta, a mais generosa fonte de abundância que sempre nutriu e abrigou seus filhos. Se tratarmos nosso planeta com cuidado, oferecendo o melhor de nós mesmos, ele nunca deixará de atender às nossas necessidades.
Frequentemente, vimos políticas, projetos de desenvolvimento e até programas de combate à pobreza que não levam em conta o que já existe em nível local. Consequentemente, os laços comunitários são enfraquecidos; as redes de solidariedade são desmanteladas; os recursos naturais são esgotados e as pessoas ficam mais vulneráveis ao longo prazo.
Não se trata apenas de envolver pessoas e comunidades nestes projetos, mas também de ajudá-las a construir suas próprias formas de superar os desafios. Por este motivo, devemos compreender estas relações com seriedade.
Apenas podemos compreender estas dinâmicas vivendo-as no dia a dia, imergindo-nos na vida da comunidade de cabeças e corações juntos. As pessoas precisam se encontrar, se conhecer, se conectar sinceramente para construir laços que superam todos os tipos de barreiras e estereótipos.
Dar o melhor de si ao outro
Ainda temos que encontrar as respostas de muitas perguntas: como construir uma solidariedade entre as pessoas no campo e nas cidades? Como podemos expandir essas relações econômicas baseadas na confiança e na abundância? Não temos todas as respostas e convidamos todos a trabalhar conosco.
Em toda parte do mundo, no norte ou no sul, e mesmo em nossa comunidade, há pessoas que vivem em aflição, que não conseguem garantir sua própria subsidência, que não podem fazer parte desta economia de abundância. Isso leva à violência na sua maior expressão. Essas pessoas são vistas como insignificantes: se não tiverem como dar, elas não valem mais nada.
- Afinal, perguntamo-nos: o que realmente damos? Nosso bem mais precioso: nosso tempo, nosso próprio ser. E isso é algo que todos podem dar. Para tanto, o maior desafio é remover as barreiras que impedem que as pessoas deem o melhor de si aos outros e ao planeta.