“Não quero mais viver de migalhas!”
Foto: Tatiana Soares et Mariana Guerra, Brasil, 2020.
Tatiane Soares, militante de Quarto Mundo, e Mariana Guerra, voluntária na ATD Brasil, participaram de uma conversa. Iniciaram este encontro compartilhando gostos de plantas e dicas de cultivo.
“Se plantar uma sementinha, nasce uma esperança. A semente é cada flor que vai nascer na tua vida”
Tatiane propôs uma visita virtual de seu quintal com a câmara de seu celular : sua casa no Morro dos Anjos, no bairro Caxambu em Petrópolis1, está cercada de árvores, de plantas, de flores e de uma horta diversificada. A vista de sua casa é uma paisagem deslumbrante das montanhas desta região serrana do estado do Rio de Janeiro.
Desde o inicio, Tatiane descreve seu apego à terra como parte de seu engajamento.
“Estamos aqui de passagem, devemos fazer algo e plantar sementes”
Para Tatiane, o cuidado do outro é um dever que temos frente à humanidade. Não é caridade. Para ela, este sentido do outro se refere aos humanos e se estende ao meio ambiente. Somente assim, poderemos enfrentar o empilhamento de crises que assolam o Brasil e o mundo. Com esse espírito, Tatiane propôs a Mariana acrescentar sementes de girassóis nos kits de produtos de prevenção à COVID 19 compartilhados com os moradores do Morro do Anjos. A semente é o abraço que não pode ser dado em tempos de pandemia.
“É assim que eu penso minha vida, eu vou fazer o máximo que eu puder. As pessoas precisam de palavras. Neste momento, estamos precisando de um abraço. Lembrei do girassol, uma flor amarela. É bonita. Colocamos estas sementes de girassóis para as pessoas plantarem. Se botar uma sementinha, nasce uma esperança. É cada flor que vai nascer na tua vida”.
“Tudo que a gente faz na vida, tudo que a gente planta, é esperança. E com a esperança, tudo vai dar certo”.
Encontros, espelhos e engajamento
Aos 16 anos, Tatiane passou pela dura experiência de morar na rua enquanto estava grávida. Varias vezes, passou fome. Nesta conversa, não se ateve à descrição do que sentiu na rua e como vivenciou este momento. Em vez disso, ela escolheu falar-nos de alguns encontros com pessoas que tocaram-na. São pessoas que estimularam um desejo de mudança de vida e seu engajamento. Por exemplo, este homem que vendia frangos assados:
- “eu estava com o dinheiro para comprar o frango assado. O vendedor me diz: “não, pegue este frango”. Eu sentei no meio da rua e, enquanto estava comendo, pensei: Meu Deus! Isso tudo é para dar mais valor, isso tudo é para mim aprender a ser uma pessoa melhor. Então aprendi a dar mais valor as coisas que Deus vai me dando na minha vida”.
No Brasil, como em outros países, moradores da rua e pobres em geral são estigmatizados e sofrem muitos preconceitos. Por isso, Tatiane insista na importância de compreender a extrema pobreza do ponto de vista de quem se encontra nestas situações:
“Hoje eu posso compreender porque que as pessoas estão na rua, porque estão passando necessidades, porque agem como agem”.
Com a ajuda da sogra, Tatiane conseguiu sair da rua. Ela se mudou para Caxambu em um momento em que não “não tinha esgoto, não tinha nada”. Precisou encontrar formas de sobreviver. Ou ainda, para fazer fraldas para seus filhos, recortava roupas. Nos dias de feira, junto com as mulheres vizinhas, recuperavam as xepas não vendidas. Aos poucos, estas experiências aproximam essas mulheres. Juntas, desenvolvem saberes que lhe permitem sobreviver.
Tatiane ainda evocou violências que ela e outras mulheres do bairro sofreram. Descrevendo estes momentos, Tatiane conclui:
“Eu não tenho vergonha da minha vida, da minha história. Protegi meus filhos da fome da melhor maneira possível. Mas chegou um momento da minha vida que pensei: não quero mais isso não! Não quero mais viver de migalhas!”.
Há mais de 13 anos Tatiane conheceu a ATD e ao longo do tempo foi encontrando pessoas de diversos países. Foi criando laços de amizade com eles, em particular com Mariana Guerra. Estes encontros ressaltam a força e o sentido da vida de Tatiane. Ela reconhece o quanto sua vida é uma incansável luta para se manter de pé:
- “Às vezes, as pessoas falam coisas que a gente pensa que esquece… Mas a gente nunca esquece! São pessoas que marcaram minha vida. Mariana trouxe uma pessoa da Delegação Geral e ele veio na minha casa! Aquilo me marcou e me senti de repente importante! São pessoas tão diferentes, mas compartilhamos um engajamento comum. Somos espelhos um para com os outros. Os voluntários, são anjos! Por exemplo, Eugen Brand me perguntou o que me dava força para superar as dificuldades e eu respondi: a minha fé”.
Junto com membros do Movimento, Tatiane passa a organizar encontros com mulheres do Morro dos Anjos. Reúne mulheres que, como ela própria, evitavam se olhar no espelho. Esses encontros são pontos fora da curva da vida de uma mulher pobre. Neles, elas podiam falar, ser escutadas, sair da rotina, refletir e se fortalecer juntas. Podiam se olhar num espelho e se sentir orgulhosa pela imagem refletida. Não seria isto que viabiliza dar a volta por cima? São momentos em que se reconhecem os valores e as forças dessas pessoas:
- “Aqui, têm muitas mulheres com imaginação, sabedoria, mulheres que querem vencer. Eu gosto mais de mulheres mais carentes, são guerreiras, querem vencer. Nós, mulheres temos que nos unir para dar um basta. Nós, mulheres da comunidade, quando sofremos violência, nós não nos amamos mais! Nos não temos coragem de nos olharmos para o espelho! Se você dá um espelho para uma mulher da comunidade, ela costuma desviar o olhar! Porque ela não quer se ver bonita? A gente não se sente amada, a gente se sente um lixo. Só que isso, na minha cabeça, acabou. Um belo dia pensei: não quero essa vida para mim. Eu quero ter uma vida melhor, eu quero ser mulher diferente”.
“O mundo está gritando, o mundo está precisando de ajuda!”
A filosofia de vida de Tatiane não limita a alteridade ao ser humano. Junto a tudo isto, pulsa forte no coração de Tatiane o meio ambiente, o ser vivo, ou seja, a biodiversidade.
Analisando a pandemia, Tatiane está longe de descrever um cenário apocalíptico:
- “As pessoas falam que essa pandemia matou muita gente, veio para acabar com o mundo’. Não é isso. Se a gente parar para pensar, isso pode vir par nos unirmos mais, para pensar no que conta mesmo neste mundo fazer um lugar melhor? Por que hoje em dia, é tudo falta de amor, falta de paz. Pessoas perdem tudo, estamos sacrificando bichos à toa… Mas o mundo está gritando, o mundo está precisando de ajuda! E o que resta no nosso coração é nosso amor. Essa pandemia está matando… Mas não vai nos vencer não, temos que fazer o máximo que eu pudermos, temos que fazer a diferença.”
- Petrópolis é uma cidade situada a cerca de sessenta quilómetros da capital do estado , o Rio de que Janeiro, no sudeste do Brasil. Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística estima que sua população é de 306.678 habitantes, cf. https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/petropolis.html